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No mundo árabe, Islão significa democracia e Ocidente ditadura

O ocidente leva mais de um século financiando as ditaduras no Médio Oriente e no Mundo Árabe

Abdennur Prado, Presidente da Junta Islâmica Catalã e organizador do Congresso Internacional de Feminismo Islâmico. É autor de vários livros e artigos sobre questões contemporâneas do Islão, que poderão ser encontradas no seu blog

Fonte: Webislam

Os protestos pró-democráticos e contra as ditaduras financiadas pelo Ocidente no Mundo Árabe demonstraram, uma vez mais, a imensa hipocrisia dos nossos governantes. De que lado estão os governos ocidentais: do lado dos manifestantes ou do lado dos ditadores? A resposta é simples: do lado de aqueles que geram benefícios milionários às grandes multinacionais do Ocidente.

Mas isto não é nenhuma surpresa. É sabido que o Ocidente leva mais de um século financiando as ditaduras no Médio Oriente e no Mundo Árabe, pois é através das autocracias que consegue controlar as riquezas desta parte do planeta. Ainda que isto signifique a exploração e a pobreza dos povos, que se confrontam com o desmantelamento das políticas sociais, auspiciadas pelo Fundo Monetário Internacional, de modo a pagar a dívida externa gerada pelas compras milionárias de armamento ocidental... Já as aspirações da sociedade civil, a pobreza cada vez mais generalizada, a tortura e a repressão, a falta de liberdades e de direitos...: não interessam minimamente a nenhum governante ocidental. E isso o vêm demonstrando todos eles, ininterruptamente, sem exceções conhecidas, desde há mais de um século. As recentes declarações de Henry Kissinger são significativas: “tivemos cinco presidentes que consideraram que Hosni Mubarak era a melhor maneira de alcançar os objetivos dos Estados Unidos da América na região”.

Temos que fazer mais do que resgatar das hemerotecas as sucessivas declarações de dirigentes ocidentais a elogiar os tiranos árabes: pelas suas políticas económicas, pela manutenção da estabilidade, por contribuir para a segurança internacional, por garantir o secularismo e travar o progresso dos movimentos islamistas... Enfim: por serem submissos aos ditames dos mercados financeiros do Ocidente e do Fundo Monetário Internacional.

Este quadro geral apenas contempla uma variante: a conivência ou não com o Estado de Israel. Isto mostra o papel decisivo de Israel na manutenção das ditaduras no Mundo Árabe, facto corroborado pelas declarações de apoio de Netanyahu a Ben Ali e a Mubarak, bem como pelas décadas de conivência a família real saudita e outras monarquias fabricadas pelo colonialismo. Não é surpreendente saber que a diplomacia israelita fez todos os possíveis para salvar Mubarak. Desde logo, a preocupação de Israel está justificada, não apenas pelo perigo da vinda do Islão político, mas também pelo facto de que os governos democráticos que possam surgir não mantenham a cumplicidade dos seus países para com o genocídio do povo palestino. A abertura da fronteira de Gaza com o Sinai é um ponto chave para a sobrevivência do povo palestino. Esta é uma razão de peso para dar as boas-vindas à democracia no Egipto e no Médio Oriente!

E que dizer do “islamismo”? Trata-se do espantalho que serve para justificar o apoio às ditaduras “laicas”. No entanto, oculta-se de forma deliberada que a democracia parlamentar é atualmente aceite de forma maioritária pelos chamados partidos islamistas em todo o Mundo Árabe.

Um caso paradigmático é o da Irmandade Muçulmana no Egipto. Já em 1944, o seu fundador, Hasan Al-Banna, defendia a sua participação nas eleições parlamentares com o argumento de que a Constituição egípcia era “islâmica”, pois reconhecia que a autoridade reside no povo e garantia a tomada de decisões em concertação (Shura) e o respeito pelas liberdades individuais. Em algum dos seus escritos mostrou-se favorável à democracia parlamentar: “As bases da organização política fundada na representação parlamentar não contradizem os fundamentos que o Islão estabeleceu para a organização do poder”. Desde a sua origem, a Irmandade Muçulmana não deixou de repetir que a sua intenção não era tomar o poder, mas educar a sociedade e influenciar o sistema, para que os ideais islâmicos de justiça fossem implementados. Apesar disso, é brandida como um espantalho pelos meios de manipulação de massas e pelos governos do Ocidente. (Não sou fã da Irmandade Muçulmana, mas sou contra a sua diabolização. Para conhecer as suas posições, pode-se visitar a sua página em inglês).  

Agora fala-se do regresso à Tunísia de Rachid al-Ghannouchi, fundador e líder histórico do partido tunisino En-Nahda, após 22 anos de exílio. Segundo Ghannouchi, o Islão oferece um quadro mais fecundo do que o ocidental para que a democracia frutifique. Há um livro de Azam Tamimi que examina detalhadamente o seu pensamento: Rachid Ghannouchi: A Democrat Within Islamism, editado pela Oxford University Press. Entre os seus ideais, podemos ler: “um sistema islâmico baseado na vontade da maioria, eleições livres, uma imprensa livre, proteção das minorias, igualdade dos partidos seculares ou religiosos, e a plena consecução dos direitos das mulheres em todos os âmbitos, desde a participação nas eleições, a liberdade de vestuário, o direito ao divórcio até ao direito a ser chefe de Estado. O papel do Islão é proporcionar um sistema ético”.

Um sistema ético que passa necessariamente pela abolição da usura, que garanta os serviços básicos a toda a população e o estabelecimento de mecanismos que evitem a acumulação de capital em poucas mãos. Algo tão válido para Espanha como para o Egipto.

Em suma: é um facto que, hoje em dia, os movimentos islamistas são os líderes da democracia, contra as tiranias corruptas financiadas pelo Ocidente. Torna-se curioso ver como os termos se invertem, até ao ponto de fazer passar por absolutistas aos opositores que exigem democracia... e como seus salvadores os ditadores que reprimem as liberdades cívicas. O mundo ao contrário? O mundo visto através dos meios de manipulação de massas. Ou seja, desde o prisma dos interesses das grandes corporações financeiras do Ocidente.

Tradução: Ana Lúcia Sá.