Decolonial Translation Group


Com Fanon, Ontem e Hoje, por Nelson Maldonado-Torres

Nelson Maldonado-Torres é presidente da Associação Caribenha de Filosofía.

No contexto do qüinquagésimo aniversário da morte de Frantz Fanon, este curto ensaio tenta delinear a relevância da obra do autor, dentro do contexto das contínuas mobilizações anti-colonialistas e anti-racistas no Terceiro e Primeiro Mundo. O ensaio oferece uma visão algo distinta a outras expressões recentes, tais como a de Philippe Pierre-Charles e Oliver Besancenot, e tenta establecer algumas linhas de contato com movimentos sociais atuais, tais como os “indígenas da república” na França.

Faz pouco mais de cinquenta anos que o grande pensador , veterano martiniques e argelino Frantz Fanon escreveu: “ A explosão não terá lugar hoje.É muito cedo…Ou muito tarde.” (1973:7). Fanon escreveu estas palavras após haver participado junto à resistência francesa na Segunda Guerra Mundial, antes de chegar na Argélia e unir-se à Frente de Libertação Nacional. Sua participação em ambas guerras tinha algo em comum: sua oposição ao racismo, ao imperialismo, ao colonialismo e à desumanização de uns povos por outros. Explosões houveram por todas as partes durante estas guerras e, ainda assim, a persistência dos problemas que Fanon confrontou naquele momento indicava que “a explosão” que nos levaría a um final todavía não havia chegado.E que sua chegada tampouco era certa.
Ainda hoje, cinquenta anos a partir de sua morte,  em um certo sentindo nos encontramos nestas mesmas condições existenciais e históricas. Embora seja certo que  as relações coloniais formais não são tantas nem tão óbvias como foram naquele momento, é necessário admitir que ainda existe um padrão de poder global e um universo de representações simbólicas fortemente enrraízadas na larga história das relações coloniais modernas, incluindo aquí, entre outros, o racismo, a escravidão e o genocidio modernos. Na mesma linha de Fanón, o sociólogo peruano Aníbal Quijano se refere a isto como a “colonialidade do poder” e a pensadora jamaicana Sylvia Wynter o novo  “propter nos”, o discurso civilizatório da modernidade

Assim, o objetivo hoje continua sendo lutar contra as relações formais de colonização, assim como desenhar estratégias de oposição e mudanças em relação às dimensões coloniais, racistas e desumanizadoras dos estados-nação e de um padrão global de poder que nao pode denominar-se meramente capitalista. Fanon mesmo nos aconselhava em seu clásico “Os condenados da terra” a evitar  concepções que reduzem o problema do colonialismo e do racismo a um problema de clase. “Nas colônias, a infraestrutura é igualmente uma superestrutura. A causa é consequência:   se é rico porque é branco, se é branco porque é rico. Por isso as análises marxistas devem modificar-se ligeiramente sempre que se aborda o sistema colonial” (1977:34). Cinquenta anos depois de sua morte,  ainda nos falta muito para entender e assimilar todas as dimensões desta sentença fanoniana sobre todos os círculos de esquerda.

Os problemas que Fanón observou e diagnosticou nas colônias nunca foram relevantes somente nelas. A colonialidade do poder, do ser, do conhecer e do gênero ( ver os trabalhos de L.Gordon, R. Grosfoguel, M. Lugones, W. Mignolo, A. Quijano, B. de Sousa Santos, C. Walsh, y S. Wynter entre outros)  forjou-se na colônia, no barco com escravos, nas plantações, no espaço íntimo da casa, no Estado, na relação entre império e colônia, e entre centro e periferia. Dali se expandiu de múltiplas formas, de modo que hoje em dia está por todos os lados e nos afeta a todos. Ao mesmo tempo, não é estranho que a colonialidade se mostre de forma particularmente viciosa em relação a sujeitos racializados e aqueles provenientes de colônias atuais e antigas. Por isso  hoje, cinquenta anos depois da morte de Fanon, seu pensamento seja altamente relevante não apenas em relação à compreensão das dinámicas da “colonialidade global”, mas também em relação aos modos de exclusão encontrados e aos esforços de re-humanização organizados por descendentes de escravos e sujeitos coloniais, assim como de migrantes provenientes do Sul Global as metrópoles e cidades dos antigos impérios, entre outros grupos de sujeitos cuja mesma humanidade está em questão. Embora  Fanón tenha visto uma Europa que havia sido visitada recentemente por excessos de colonialidade, manifestada na hybris imperialista e racista hitleriana, hoje em dia, mais do que nunca, a Europa é frequentada por sujeitos coloniais procedentes de regiões onde se construiram elementos cruciais da colonialidade. E é em relação a estes sujeitos que  a Europa continua mostrando sua maneira usual de esconder os problemas que ela mesmo cria e que outros sofrem, e de patologizar as comunidades e os movimentos que protestam ou buscam mudanças. Algo parecido também ocorre nos Estados Unidos, com seu ataque a migrantes de fala espanhola e outras comunidades que sofrem preconceito , e não é raro encontrar atitudes parecidas entre as elites do Sul Global.

Hoje, todavía mais que ontem, Fanón é relevante não apenas nas colônias, mas também nas metrópoles. E é ali, na metrópole, onde se diz que não há racismo porque somente existem cidadãos, enquanto “cidadão” significa somente um tipo particular de ser humano que não admite nem aceita elementos fundamentais da humanidade de comunidades e sujeitos que são percebidos como fora da norma. É alí também onde a denuncia do racismo e a afirmação da humanidade completa dos sujeitos exluídos e desumanizados leva a apelidar-los de essencialistas, que dizer, a re-patologizar-los, ou a dizer que confundem o problema porque usam tecnicismos particulares como “pos-colonialismo” e outros. Todavía hoje, na metrópole como em outros lados, as direitas se unem mais ás esquerdas na hora de silenciar o racismo e na hora de deslegitimar grupos sociais que desafiam as normas interpretativas modernas, quer sejam liberais, conservadoras, ou marxistas, que presumem ditar o que é ação social e política. Não é estranho, portanto, que a luz de tais afrontas estes sujeitos encontrem apoio en Fanon, e sobretudo num Fanon que nunca colocou o método por cima das pessoas, e que estava muito familiarizado com as tramas complexas do racismo e da colonialidade.
   Colocar em ação o pensamento de Fanon hoje significa não apenas celebrar suas palavras e atos, e sim participar da descolonização e des-racialização da sociedade,  do Estado, do mundo em que se habita.E é este compromisso com os condenados do presente, mais do que com uma futura possível ou impossível “explosão” e menos ainda com a patologização ou re-patologização dos grupos aos quais importa sua identidade cultural, que melhor reflete uma ação fanoniana hoje. Os “condenados” também tem seus objetivos e o pensamento de Fanon ajuda tanto a auto-crítica quanto a formulação de metodologías e estratégias para construir laços entre comunidades distintas de condenados.
Do Caribe até a França, da França à Argélia, da Argélia ao resto da África e aos Estados Unidos, dos Estados Unidos à America Latina e da América latina à Asia, estas e muitas outras podem ser as conexões e trajetórias diversas da ação descolonial. Ainda aqui, Fanón tem muito a nos dizer.  

Fanon escreveu “pertenço irredutivelmente á minha época”. Com todas as diferenças significativas entre o mundo em que Fanon viveu e o nosso, quiçá nos caiba admitir que continuamos pertencendo tanto a época como ao pensamento vivo de Fanon. A descolonização é um projeto inconcluso.

 

Tradução: Bruna Muriel




BIBLIOGRAFÍA

Frantz Fanon (1973) Pele Negra, Máscaras Blancas (Editorial Abraxas, Buenos Aires).
Frantz Fanon (1977) Os condenados da terra (Fondo de Cultura Económica: México)