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Charlie Hebdo: o sagrado dos "Condenados da terra" e sua profanação

Publicado em 26 de janeiro de 2015 por Houria Bouteldja, membro do PIR

 

"Será preciso fazer o dossiê dos colaboradores, assassinos de Charlie. Eu vou nomeá-los: há os Indivisíveis de Madame Rokhaya Diallo que premiou Charlie Hebdo com o Y’a Bon Awards, eu mesmo fui premiado, Luc Ferry também o recebeu, Christophe Barbier, muitas pessoas, Finkielkraut; há os Indígenas da República, o rapper Nekfeu que queria fazer "um auto da fé para estes cachorros do Charlie Hebdo", Guy Bedos que conhecemos outrora melhor inspirado. Será preciso fazer de forma sistemática e histórica a relação daqueles que justificaram ideologicamente a morte dos doze jornalistas de Charlie Hebdo." Pascal Bruckner, 15 de janeiro de 2015 (28 minutos sobre Arte).

"O que nos incomoda, não é viver com guarda-costas e as ameaças de morte" são os outros ataques, "as pessoas que te tratam de islamofóbico quando na verdade você é antiracista e está lutando pela liberdade. O mais doloroso de viver são essas acusações perniciosas que podem armar uma Kalashnikov!". Caroline Fourest, 8 de janeiro de 2015 (enviada especial de France 2).

Eu desprezo essas pessoas. Até aceitaria reconhecer que eles têm o direito de ser racistas se de fato eles assumissem que o são como a FN. Mas eles são covardes demais para isso. Eu os desprezo, porque eles amam a guerra e dizem amar a paz. Eles justificam o Ocidente e seus crimes e se fazem passar por almas nobres. Eles pisoteiam milhões de cadáveres e vidas pulverizadas pela Civilização e encenam, impudicos e obscenos, sua raiva fingida e tristeza dissimulada. Eles são objetivamente os elos dessa corrente infernal em cuja extremidade se encontram os irmãos Kouachi. Será que eles sabem a sua responsabilidade na morte de seus companheiros de estrada? Pouco importa, eles desembainham suas armas. Os culpados? Os "islamo-esquerdistas"! Eu os desprezo porque eles são fracos. Tão pequenos que você precisa de uma lupa para enxergá-los. Irresponsáveis que já estão na lata de lixo da história. Passemos.

Eu já passei dos quarenta. Por toda a minha vida de indígena, eu nunca vi alguém insultar nosso profeta. Nunca na minha vida, eu juro. Não se trata de um interdito nem de um tabu. Essa ideia não nos passa pelo espírito. Simplesmente, esse pensamento não existe. Trata-se de uma relação com o sagrado que agrega o consentimento de mais de um bilhão de almas entre as quais existem ateus, agnósticos e “pensadores livres”. No entanto, a Ummah é permeada de mil contradições e nossas divisões são inumeráveis. Mas, historicamente, nós não conhecíamos essa separação radical entre Igreja e Estado, como não conhecíamos este tipo de distinção entre o profano e o sagrado, entre a esfera pública e esfera privada, entre a fé e a razão1. Foi necessário o advento da modernidade capitalista, ocidental e seu narcisismo ultrajante e arrogante para universalizar processos históricos - laicidade, iluminismo, cartesianismo - geográfica e historicamente situados na Europa Ocidental. É uma especificidade que se autodeclarou universal pela força das armas e das baionetas. Quanto às outras especificidades, que não são dignas o bastante para entrar na história, ou elas abdicam ou elas são bárbaras. Mas parece que, com a figura tutelar do profeta, a colonialidade na sua versão francesa encontrou um obstáculo. Quando Charlie Hebdo publicou as caricaturas, algumas racistas e outras obscenas, no começo eu fiquei chocada. Eu pensei: "Não vão nos poupar de nada". O racismo em todas as suas formas: desprezo, paternalismo, orientalismo. A discriminação em todas as suas formas: becos sem saída, crimes policiais, controles de identidade praticados por policias por causa da cor da pele ou do formato do rosto, morte prematura de nossos pais por causa das condições de trabalho, criminalização de nossas lutas, clientelismo, prisão ... A “hogra”2 de novo e ainda. Mas neste caso, um patamar foi ultrapassado. Não se tratava mais de simples insultos ou de uma violência feita à uma pessoa. Foi um sacrilégio. Por um momento, pensei em “Tintin e as sete bolas de cristal”. Ao retornarem da América do Sul, os sete membros de uma expedição dedicada à pesquisa sobre os Incas foram vítimas, um após o outro, de uma maldição e se viram mergulhados em uma profunda letargia, vítimas dessa maldição. Durante suas escavações, os pesquisadores profanaram a tumba e desrespeitaram as crenças ancestrais. A vingança dos Incas não demorou muito. Ai está para onde leva a fria racionalidade das Luzes. Ao fanatismo da razão mercantil e capitalista. É por isso que, depois do primeiro susto, o sentimento que predominou em mim não foi tanto o choque, mas o medo. O PIR reagiu imediatamente3. Escrevemos essas linhas que ecoam fortemente na minha cabeça ainda hoje:

“Muitos são os franceses que, sem necessariamente compartilhar a orientação política da revista Charlie Hebdo, vão apreciar sem dúvida essa charge contra o Islã em nome de uma tradição enraizada no anticlericalismo que assimila abusivamente toda religião a um arcaismo antagônico à modernidade e à emancipação. Essa abordagem que encontrou, em uma época e em circunstâncias particulares, uma justificativa foi acompanhada, no entanto, por uma crescente hostilidade contra o sagrado, abrindo espaço para uma racionalidade estritamente instrumental, desprovida de sentido e que despreza toda forma de transcendência. Essa mentalidade também levou à estigmatização de uma parte das classes populares brancas vistas com desdém por seu apego às suas crenças, inclusive por parte de correntes políticas que dizem defender as populações mais desfavorecidas. A crise não é apenas econômica. É também uma crise cultural e espiritual. Na véspera das eleições presidenciais, aqueles que queriam que seu projeto de transformação da sociedade tivesse repercussão deveriam considerar isso. De nossa parte, continuaremos a lutar contra a islamofobia, pela igualdade dos direitos dos muçulmanos e a defender o espaço do sagrado”.

Chamo a atenção para a última frase pois ela foi repreendida na época: “Defender o espaço do sagrado”. Alguns dos nossos aliados brancos, todos sinceramente mobilizados contra as caricaturas racistas do profeta, acreditaram detectar ai uma concessão feita a uma forma de beatice ou até mesmo uma forma de demagogia para agradar a nossa suposta base social que precisava ser bajulada. Estupidez crassa. Foi preciso um atentado de uma determinação terrifiante, a morte brutal de vinte pessoas para compreender a materialidade do sagrado profanado e sua dimensão política. Não o sagrado dos dominantes - a bandeira, o hino nacional – (extremamente protegido e cuja crítica de sentido único está situada nas relações de poder), mas o sagrado dos “Condenados da terra”. Não era preciso ser um grande sacerdote para adivinhar que esse sistema produz bombas-relógio - e nossos amigos o sabiam -, mas era preciso estar na nossa pele para compreender a ferida aberta da nossa dignidade ultrajada. Nós sabemos que não somos nada. Não cessam de nos dizê-lo. Nossa humanidade é pisoteada e cada um limpa seus pés sobre ela. Uma das poucas figuras que nos reabilita e sobre a qual projetamos o nosso “nós” positivo e digno é a do profeta. Ele nos mantém de pé pois ele é justiça, retidão e bondade. Ele é nosso reflexo positivo. O que nós vemos é o espelho invertido do que nos remete nosso passado torturado, os livros de história, TF1, Marianne, Onfray, GRIF ou a UMP. Até mesmo nosso humor, nós o voltamos contra nós mesmos. Não dizemos nós: “os Árabes inventaram o zero e nele permaneceram?”. Quando primeiro nos matam socialmente – “vocês são gentalha que precisa ser limpa com karcher”[1]4 – e, em seguida, acabam conosco simbolicamente – as caricaturas do profeta – acreditem, é preciso esperar o pior. Sim, eu tive medo. Assim, os jihadistas responderam: nossas vidas não valem nada, mas as de vocês também não. Vocês nos exterminam, nós exterminamos vocês. É a maldição da “gentalha”. Passemos.

Em setembro do ano passado uma militante do PIR, Aya Ramadan, foi convidada pelo Partido Comunista de Bobigny, para a festa do jornal L´Humanité. O PC não havia se recuperado de sua derrota nas eleições municipais para a UDI. Aya tinha produzido uma análise5 que abalou as certezas e que explicava porque muitos indígenas passaram para a direita. O debate, sem surpresa, foi decepcionante. A separação entre a esquerda e a periferia somente poderia ser explicada, de acordo com o PC de Bobigny, por uma forma de ingratidão por parte dessa juventude. Eu tomei então a palavra martelando a ideia de que o divórcio estava consumado e que era preciso tomar nota disso. Eu acrescentei: “Nós não confiamos mais em vocês. Essa confiança somente será restabelecida quando vocês decidirem uma vez por todas que os mulçumanos e os moradores da periferia fazem parte de seu povo. Vos julgaremos no próximo atentado terrorista. Certamente ele fará muitas mortes e será cometido por “muçulmanos”, ou melhor dizendo, por franceses integrados demais à máquina criminal imperialista. Será um teste. Nós saberemos então se vocês terão a coragem de ficar do nosso lado, do lado de milhões de “muçulmanos” que serão tomados como reféns entre os terroristas e a boa consciência republicana. Vocês estarão então conosco ou contra nós”. Nenhuma profecia nessas palavras, mas simples lucidez. Os irmãos kouachi e Amedi Koulibaly foram prendidos por Khaled Kelkal, Mohamed Merah e Mehdi Nemmouche, todos “muçulmanos”, todos indígenas. A fonte de sua loucura mortífera só terminará quando, terminarem, no exterior, as guerras imperialistas e, no interior, a fratura racial. No 11 de janeiro de 2015 o PC “era Charlie”. Ele comungou, durante o fervor nacional, com a OTAN, Israel, os dirigentes da Europa liberal e imperialista. “Com nossas próprias palavras de ordem”, se justifica o PC. Mas, no 11 de setembro de 2001, o PC já era norteamericano. Do voto dos plenos poderes em 566 até “Je suis Charlie” passando pelo celebríssimo “somos todos Americanos”, há como que um ar de família. Passemos.

Hoje eu me entristeço com nossos amigos porque olham para o nosso dedo quando estamos mostrando-lhes a lua, por zombarem de nossa palavra quando essa é uma advertência. Eu culpo Charlie Hebdo de nos fazer carregar coletivamente o fardo tão pesado de sua inconsistência. Eu os culpo por terem deixado passar aquilo que era essencial, com certeza a única coisa que conta: nós somos humanos, não capachos. Eu os culpo por terem esvaziado a sátira de seu sentido, de a terem dirigido contra os oprimidos, o que é uma espécie de sadismo – em vez de a dirigirem ao poder e aos poderosos – o que é uma forma de resistência. “Charb conduziu sua redação à morte”7. Não sou eu quem o disse. Foi Delfeil de Ton. Eu os culpo por não terem ouvido essas vilezas de “islamo-esquerdistas”. Eu os culpo porque se eles nos tivessem ouvido talvez os teríamos salvos deles mesmos e talvez estariam eles ainda conosco.

“Talvez” porque apenas Deus sabe.

Traduzido por Ana Catarina Zema de Resende.


 

Notas

1 “Eu gostaria de lembrar aqui que, no espírito de Marx, o comunismo concretizado - e, portanto, a emancipação humana como ele a concebia – consistia na reassociação de instâncias sociais (econômica, política, cultural ...) dissociadas ao máximo pelo Capital ". Sadri Khiari, Sainte Caroline contre Tariq Ramadan, p.69.

2 A “hogra” é um termo árabe argelino que significa desprezo ou desdém expresso pelo poder com relação à população, significa também injustiça, iniquidade, abuso de poder e humilhação. (Nota da tradutora).

3 Charlie Hebdo appelle à voter Marine Le Pen, PIR.

4 O Karcher é uma lavadora de alta pressão. A expressão “limpar com Karcher” ficou famosa na França depois de uma declaração de Nicolas Sarkozy em 2005. Na época, ministro do Interior, Sarkozy visitava uma periferia de Paris depois da morte de um jovem e disse: "Vamos limpar a cidade dos 4000 com Karcher". Isto gerou uma indignação por causa da comparação que ele fez dos moradores da periferia com a sujeira que precisa ser limpa.

5 Bobigny 2014: quand les Arabes et les Noirs font campagne pour la droite blanche, Aya Ramadan.

6Déclaration du Bureau politique du Parti communiste français ( 27 de abril de 1956).

7Polémique dans la famille Charlie Hebdo, Ariane Chemin.