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As mulheres brancas e o privilégio da Solidariedade

 Este é o texto da intervenção de Houria Bouteldja, porta-voz do PIR no IV Congresso Internacional sobre feminismo islâmico, que foi realizada em Madrid, nos dias 21-24 de Outubro. Mais de 500 pessoas inscreveram-se para o evento, centrado na análise da situação atual desse movimento e suas perspectivas futuras e promovido pelo Conselho Islâmico Catalão (JIC) e a União das Mulheres Muçulmanas em Espanha.

 

Em primeiro lugar gostaria de agradecer à Junta Islamica Catalã pela organização desta conferência, que é uma lufada de ar fresco numa Europa que se enrola sobre si mesmo, que é movida por discussões cada vez mais xenófobas e pelo rejeitar da alteridade.

 Espero que esta iniciativa terá un dia lugar em França tambem. Antes de entrar no vivo do assunto, quero apresentar me porque eu acho que a palavra deve sempre ser localizada.

 Eu moro na França, e sou uma filha de imigrantes argelinos. Meu pai era um operário e minha mãe dona de casa. Não falo como socióloga, cientista ou teóloga. Em pocas  palavras, eu não sou uma perita. Eu sou uma militante e falo por experiência militante, política ,e gostaria de acrescentar,por uma experiência sensorial. Eu indico todos estes pormenores porque quero que a minha intervençao seja tão honesta quanto possível. E honestamente, eu nunco pensei, até hoje , no cuadro e contexto  determinado pelo feminismo islâmico. Então, por que participar nesta conferência? Quando fui convidada, eu disse claramente que eu não tinha competencia para falar de feminismo islâmico, mas que poderia falar sobre o conceito de feminismo descolonial, uma reflexão que  acredito eu deve ser integrada com essa, geral ; sobre o feminismo islâmico. Portanto, sugiro-vos de examinar um certo número de perguntas que possam ser úteis para o nosso pensamento coletivo.

 Sera o feminismo  universal? Qual é a relação entre os feminismos feminismo branco / ocidental e do Terceiro Mundo e entre outros islâmico,?Sera o feminismo  compatível com o Islã? Se sim, como légitima lo, e, finalmente, o que podem ser suas prioridades?

 Primeira pergunta: Sera o feminismo universal?

 Para mim é a questão das questões quando nos envolvemos numa visão  descolonial  e queremos descolonizar o feminismo. Esta questão é crucial, não para conseguirmos uma resposta, mas para forçar-nos, nós que vivemos no Ocidente, a tomar precauções quando se lida com outras sociedades. Tomemos o exemplo de sociedades ditas ocidentais, que  têm presenciado o surgimento de movimentos feministas e são influenciadas por eles. As mulheres que lutaram contra o patriarcado e para uma dignidade igual entre  homens e mulheres conquistaram direitos e melhoria no estatuto das mulheres, de que eu  beneficio tambem. Comparemos a situação dessas mulheres, ou seja, nós, com as das sociedades chamadas "primitivas" na Amazônia, por exemplo. Existem ainda sociedades, aqui e ali guardadas fora das influências ocidentais. Tomem nota entre parênteses que eu não considero nenhuma sociedade como primitiva. Eu acho que há espaços /tempos differentes no nosso planeta, différentes temporalidades, nenhuma civilização está em avanço ou atrásada em relação a outra, que eu não me situo na escada do progresso e não considero o progresso como um fim em si mesmo ou como um horizonte político. Ou, dito de outra forma, eu não considero sempre o progresso como progresso, mas às vezes ou muitas vezes como uma regressão. E eu acho que o  questão descolonial também se aplica à nossa percepção do tempo. Eu fecho o parêntese. Para voltar ao assunto, se tomarmos o simples teste de "bem estar" quem nesta sala pode dizer que as mulheres dessas sociedades (que não conhecem o conceito de feminismo tal como concebido por nós) são mais infelizes do que as mulheres europeias que não só participaram nas lutas, mas beneficiarão suas sociedades através de suas conquistas de valor inestimável? Pela minha parte, so absolutamente incapaz de responder a essa pergunta, e bendito seja aquele o aquela que o possa. Mas, novamente, a resposta não é importante. E a pergunta que o é! Porque obriga-nos a uma maior humildade e trava as tendências imperialistas e os nossos reflexos d'interferencia. Ela obriga-no a não considerar as nossas normas como universais e não calcar a nossa realidade sobre a de outro. Em suma, obriga-nos a ficar na nossa característica.

 Uma vez  que esta questão esta colocada de forma clara, sinto-me mais à vontade para abordar a segunda pergunta sobre a relação entre os feminismos ocidentais e os feminismos do Terceiro Mundo. Ela é necessariamente complexa, mas uma das suas dimensoes é a dominação norte / sul. Uma abordagem descolonial deve por em questão essa relaçao e tentar inversá-lo. Um exemplo:

 Em 2007, as mulheres pertencentes ao Movimento dos Indígenas da República participaram na marcha anual de 08 de março, dedicada à luta das mulheres. Naquela época, a campanha dos EUA contra o Irão jà tinha começado. Nós decidimos andar atrás de uma bandeira, cujo lema era " nenhum feminismo sem anti-imperialismo". Usávamos todas keffiyehs palestinos e transmitiamos um folheto em solidariedade com as mulheres iraquianas, resistentes, presas pelos americanos. Na chegada, as organizadoras oficiais da manifestação começaram a gritar slogans de solidariedade com as mulheres iranianas. Estes slogans em plena ofensiva ideológica contra o Irã chocou –nos extremamente. Porque as iranianas, argelinas e não as palestinas ou as Iraquianas? Por qué estas escolhas selectivas? Para contrariar estas palavras de ordem, do nosso lado, decidimos manifestar a nossa solidariedade, não para as mulheres do terceiro mundo, mas as mulheres no Ocidente. Assim, clamamos

  Solidariedade com as suecas!

  Solidariedade com as italianas!

  Solidariedade com as alemãs!

  Solidariedade com as Inglêsas!

  Solidariedade com as francesas!

  Solidariedade com as americanas!

 Isso queria dizer: por que é que vocês, as mulheres brancas têm sozinhas o privilégio da solidariedade? Vocês também são espancadas, violadas, vocês também sofrem a violência masculina, vocês também são mal pagas, desprezadas, o vosso corpo  também é instrumentalizado. ...

 Posso dizer-vos que fomos vistas como se fôssemos extra-terrestres. O que lhes diziamos parecia -lhes surrealista, inacreditável. Foi a quarta dimensão. Não éra tanto lembrá-les o  estatuto de mulheres no Ocidente, que as chocou- Foi o fato de que Africanas e árabe-muçulmanas tenham-se permitido de inverter a relação simbólica da dominação e estabelecer-se como patrocinadores. Em outras palavras, com essa pirueta retórica, mostramos -le que elas tinham  um estatuto superior ao nosso. Frente o ar incredulo delas, nós rimos muito.

 Outro exemplo: Uma amiga me contou-me depois de voltar de uma viagem de solidariedade à Palestina como as mulheres francesas aproximavam-se das mulheres palestinas, pedindo-lhes se elas usavam anticoncepcionais para controlar a gravidez. Do que me disse o minha amiga, as palestinas nem sequer entendiam que nós podesse-mos fazer-lhes tais  perguntas, cuando se sabe a que ponto a questão demográfica na Palestina é importante. A perspectiva delas é inteiramente diferente. Para muitas mulheres palestinas ter filhos é um ato de resistência à limpeza étnica de Israel.

 Isso foram dois exemplos para ilustrar o que é a nossa condição de mulheres racializadas, compreender as questões e abrir um caminho para combater o feminismo colonial e eurocêntrica.

 Na sequência desta questão, sera o Islã compatível com o feminismo? Esta questão é pura provocação da minha parte. Não a aguento. Se a pergunto é que coloco-me  no lugar de um jornalista francês que acredita que é uma questão super pertinente. Pela minha parte, eu recuso-me a responder, em princípio. Por um lado, porque parte de uma posição de arrogância. O/ a representante de uma civilização X  soma a representante de uma civilização Y de provar alguma coisa.Y é colocada no banco dos réus e deve fornecer provas da sua "modernidade" para agradar a X. Por outro lado, porque a resposta não é simples quando se sabe que o mundo islâmico não é monolítico. O debate pode arrastar-se até ao infinito e é isso que acontece quando se comete o erro de tentar responder.Eu para não eternizar me em tais debates, faço a X a pergunta a seguir: Sera que a República Francesa é compatível com o feminismo? Posso assegurar-vos uma coisa: a vitória ideológica está no final desta pergunta. Na França, uma mulher morre  cada três dias de violência doméstica. Estima-se que 48 000 o número de mulheres violadas  por ano. As mulheres são mal remunerados. As pensões de reforma das mulheres são significativamente inferiores aos dos homens. O poder político, econômico, simbólico permanece em grande parte nas mãos dos homens. Certamente, desde os anos 60/70, os homens participam mais nas tarefas domésticas: estatisticamente, mais 3 minutos em 30 anos! Então, eu pergunto de novo: existe compatibilidade entre a República Francesa e feminismo? Somos tentados a responder não! Na verdade, a resposta não é nem sim nem não. Foram as mulheres francesas, que libertaram as mulheres francesas e é graças a elas que a república é menos machista do que era antes. É o mesmo para os païses  árabe-muçulmanos, asiáticos ou Africanos. Nem mais nem menos. Mas com um desafio adicional: consolidar a dimensão decolonial, a crítica da modernidade e do eurocentrismo na luta das mulheres.

 E como legítimar o feminismo islâmico? Pela minha parte, ele légitima-se a priori e não a posteriori. Ele não tem que  passar nenhum  exame de feminismo. O simples fato de que as mulheres muçulmanas o utilisem para reivindicar os seus direitos e dignidade é suficiente para o seu pleno reconhecimento. E eu sei pelo meu conhecimento íntimo das mulheres no Magrebe ou da imigração que "lafemme soumise" não existe. Foi inventada. Eu conheço mulheres dominadas. Submetidas (soumises), muito menos!

 Permitam-me concluir sobre o que eu acho que deveriam ser as prioridades do feminismo descolonial. Já ouviram todas falar de Amina Wadud e do seu compromisso  no desenvolvimento de um feminismo islâmico. Ela tornou-se famosa no dia em que guio a oração, um papel que normalmente é reservado aos homens. Em termos absolutos, fora de contexto, eu diria que, aparentemente, se poderia pensar que este é um acto revolucionário. Ora no contexto internacional depois da  revolução iraniana e, especialmente, desde  o 11 de setembro (a islamofobia, o Islam obrigado a fazer a sua actualização, a modernizar-se ...), estamos frente a uma mensagem muito mais ambígua, transmitida por esse acto. Sera que esse acto respondia a um forte pedido,  a uma urgência, uma espera fundamental para as mulheres da Ummah? Ou o pedido de um mundo branco à espera? Deixe-me olhar para a segunda hipótese. Não é que não existem mulheres que achem injusto que só os homens possam guiar a oração, mas porque as prioridades e urgências das mulheres  são otras. O que é que querem as mulheres no Afeganistão no Iraque ou na Palestina? A paz, o fim da guerra e da ocupação, a reconstrução das infra-estruturas, cuadros legais para a sua protecção e a dos seus direitos, comer e beber, alimentar e educar os seus filhos em boas condições. O que querem as mulheres muçulmanas na Europa e sobretudo aquelas originarias da imigração e as que vivem na sua maioria nos bairros? Trabalho, habitação, direitos que as protegem contra a violência do Estado e contra a violência masculina. Elas exigem respeito pela sua religião, sua cultura. Por que é que todas essas reivindicações  são caladas, por que é que o ato de dirigir a oração, fez a volta ão mundo, quando o cristianismo e o judaísmo nunca realmente se ilustraram pela defesa intransigente da igualdade de género? Eu acho que, para acabar com este exemplo que o ato de Amina Wadud é o oposto do que ele diz ser. Na prática, e independentemente da vontade desta teóloga, é um ato contra-produtivo. Ele só podera affirmar  o seu caractero feminista, quando o Islã sera tratado com igualdade e  quando o pedido para conduzir a oração emanar de maneira real e forte das mulheres muçulmanas. É hora de ver os muçulmanos e as muçulmanas como  são e não como gostaríamos que fossem.

 Termino com a esperança de ter tirado algumas ideias para um feminismo descolonial verdadeiro ao serviço das mulheres, de todas as mulheres quando elas sentem que é esse, o caminho para sua emancipação.

 

Houria Bouteldja, Madrid, 22 de outubro de 2010.

 

Tradução: Georges Franco